segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Taça Brasil de 1962 - 60 anos da primeira participação em torneio nacional

Inter x Botafogo (Foto colorida pelo blog 1909 em Cores)
País de dimensões continentais que é, por muito tempo o Brasil teve na sua geografia um impeditivo para a completa nacionalização do futebol. Manter uma competição regular, a ser disputada por equipes de todas as regiões tupiniquins, em uma nação de tantas faces distintas e isoladas uma das outras como a nossa, carente de malha ferroviária capaz de conectar seus mais de 8 milhões de quilômetros de território, e sede de urbanização extremamente deficiente e desigual; soava como uma utopia.
À exceção de esporádicos esforços da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), realizados especialmente nos anos 20, além de eventuais excursões para participação em torneios amistosos; o calendário dos clubes brasilianos se limitava aos muito prestigiados campeonatos estaduais. O cenário só foi alterado no final da década de 50, a partir do anúncio, por parte da Conmebol, da realização da primeira Copa dos Campeões da América, atual Libertadores, para o ano de 1960.
Visando a não ser ignorada do maior campeonato de clubes do continente, a CBD precisou organizar um certame de extensão nacional, cujo vencedor seria o representante brasileiro na copa que surgia. A primeira edição do torneio, nomeado Taça Brasil, aconteceu em 1959, e foi disputada pelos principais campeões estaduais do país.

Matéria da Revista do Globo repercutiu excursão do Santos por Porto Alegre, em 1935.
Na foto, Arthur Friedenreich e Risada.
Após conquistar quatro títulos gaúchos nos cinco primeiros anos da década de 50, o Clube do Povo passou por infeliz jejum até 1961, quando voltou a levantar a taça de dono do Rio Grande. Consagrado campeão, o Inter se classificou para a disputa da Taça Brasil de 1962, naquela que seria a quarta edição do certame nacional. A equipe base da vitoriosa campanha colorada, comandada pelo técnico Sérgio Moacir Torres, foi a seguinte: Silveira, Zangão, Ari, Kim e Ezequiel; Sérgio Lopes e Osvaldinho; Sapiranga, Alfeu, Flávio e Gilberto.

Elenco campeão gaúcho em 1961 
Fonte: Biblioteca Zeferino BrazilFECI

A primeira fase da Taça Brasil era disputada em grupos, que correspondiam às diferentes regiões do país. Integrando o chaveamento da Zona Sul brasileira, o Inter teve como seu primeiro adversário os campeões catarinenses do Metropol. Em relação aos onze jogadores que se eternizaram como titulares na conquista do campeonato estadual da temporada anterior, a grande mudança no escrete vermelho estava no gol, com Gainete assumindo a posição anteriormente ocupada por Silveira. A outra novidade colorada estava na casamata, onde Pedro Figueiró aparecia como treinador.
A estreia colorada em campeonatos nacionais oficiais aconteceu em um sábado, dia 22 de setembro. Sofrendo com as ausências de Zangão, Sapiranga e Gilberto, os três lesionados, o Clube do Povo demorou para se encontrar em campo - e pagou caro por isso. Recompensando início fulminante do Metropol, logo aos seis minutos de jogo Elário marcou aquele que foi o único gol da primeira etapa.
Precisando compensar o tempo perdido, o Colorado voltou do intervalo em ritmo intenso, que não demorou para se refletir em bolas na rede: aos dois minutos, Tite empatou, aos catorze, Alfeu virou, e, aos dezesseis, Flávio, futuro Minuano, anotou o terceiro. O Metropol ainda descontou com Hamilton, mas não conseguiu impedir a vitória vermelha, que poderia ter sido maior, não fossem os erros da arbitragem, que anulou gol de Flávio e ignorou pênalti claríssimo sofrido por Alfeu.
Registro de Flávio junto a Federação Gaúcha no ano de 1963. Com o apelido de Minuano,
o centroavante seria artilheiro na conquista do Brasileirão de 1975.
Fonte: Arquivo Histórico SCI
Passados três dias, o Estádio dos Eucaliptos recebeu a partida de volta. Demonstrando a mesma imposição vista no segundo tempo do primeiro jogo, o Inter se postou no ataque, e abriu o placar logo cedo, aos cinco minutos, com Alfeu. Pouco depois, Bedeuzinho ampliou, praticamente garantindo a classificação colorada, que, apesar do susto passado com os dois gols de Valmir na segunda etapa; foi garantida com o tento decisivo de Flávio, a quinze minutos do apito decisivo.
Com os dois triunfos, o Inter avançou para a decisão do grupo sul, a ser disputada contra o Cruzeiro, atual tricampeão mineiro. A partida de ida, realizada em Minas Gerais, teve como escore final o 1 a 1. Norival, aos 27 minutos, abriu o placar para os mandantes, enquanto Alfeu, aos 40, empatou para o Colorado.
Cercado de expectativa, o confronto de volta foi disputado no Olímpico, então maior estádio de Porto Alegre. O tempo instável daquela quarta-feira 17 de outubro, todavia, desmotivou o público, que compareceu em pequeno número. Para além do borderô, a chuva também afetou a qualidade do jogo, castigado pelo estado precário do gramado.
Ignorando o clima, o Inter soube fazer o dever de casa, e venceu a partida por 2 a 1, com gols de Alfeu e Mauro. Classificada, a equipe vermelha seguiu para as semifinais da Taça. Nesta fase, teria que viajar ao Rio de Janeiro, onde no dia 21 de novembro enfrentaria o Botafogo e sua constelação de craques, no primeiro confronto do embate que definiria um dos finalistas do campeonato.
Enquanto o Inter se preparava para a partida do Maracanã, o mundo temia a deflagração de uma Guerra Nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética, o que quase aconteceu em outubro, durante a famosa Crise dos Mísseis Cubanos. Os tensionamentos entre as duas potências se desdobravam na política brasileira, imersa nos debates quanto à realização de um plebiscito que decidiria por um regime político entre parlamentarismo e presidencialismo.
Tamanho estresse era aliviado nas mesas de bar que ainda comemoravam a conquista do bicampeonato mundial, ocorrida em junho daquele ano. Na ocasião, após perder Pelé na segunda partida da fase de grupos, a Seleção Brasileira contou com a inspiração do craque Garrincha para vencer a Copa do Mundo do Chile. Nilton Santos, a ‘enciclopédia do futebol’, considerado o melhor lateral-esquerdo de todos os tempos; Zagallo, ponteiro de fundamental função tática no revolucionário 4-3-3 canarinho; Didi, o ‘folha-seca’, maestro de qualquer meia cancha que ocupasse; e Amarildo, o Possesso, substituto de Pelé, que marcou três gols na vitoriosa campanha, um deles na final, empatando o jogo contra a Tchecoslováquia, em duelo no qual também deu magnífica assistência para o tento da virada, marcado por Zito; foram outros nomes protagonistas no título canarinho. Todos estes, ressalta-se, jogadores do Botafogo de Futebol e Regatas.

Garrincha  craque do Brasil, jogava no Botafogo em 1962

O epopeico embate que se avizinhava era aguardado com grande expectativa pelo Clube do Povo. Não pelo gigantismo do adversário em si, uma vez que, no que se referia a expressividade, o Inter também ostentava rica biografia ao longo de suas cinco décadas de vida; mas sim pela possibilidade de eliminar um grande oponente e atingir uma inédita final de campeonato nacional. Caso a classificação não fosse conquistada, a torcida esperava, pelo menos, não repetir o atropelo que fora o confronto entre Grêmio e Santos, na mesma fase da Taça, em 1959, quando o time de Pelé aplicou sonoros 4 a 1 no clube portoalegrense.
Sabedor de que estar entre as quatro melhores equipes do país era um grande feito para o jovem elenco do Inter, cuja média de idade não passava dos 20 anos, Pedro Figueiró esbanjava otimismo e ambição na véspera da primeira partida, quando declarou à imprensa que o Clube do Povo tinha o direito de se sentir favorito por conta da vontade que seus habilidosos jogadores vinham mostrando dentro de campo. Contrastando com a simpatia do comandante vermelho, a opinião pública tratava o confronto de maneira análoga ao histórico embate entre Davi e Golias, demonstrando respeito às muitas estrelas que compunham o elenco do clube da estrela solitária.
Charge do cartunista Sampaulo retratava o tamanho do desafio colorado
Mais uma vez, o mau tempo apareceu na campanha colorada, obrigando o primeiro jogo a ter seu início adiado em quase uma hora. Quando finalmente subiu ao gramado do Maracanã, a equipe gaúcha estava escalada com Gainete no gol; Zangão, Ari, Cláudio e Ezequiel na defesa; Kim e Osvaldinho no meio de campo; além de Sapiranga, Alfeu, Flávio e Gilberto na frente. Os mandantes, por sua vez, apostaram no seguintes onze iniciais: Manga; Joel, Zé Maria, Nilton Santos e Rildo; Airton e Arlindo; Garrincha, Quarentinha, Amarildo e Zagallo. Excetuando-se Didi, que logo depois da disputa da Copa do Mundo se transferiu para o Peru, onde simultaneamente treinou e atuou pelo Sporting Cristal; todos os grandes nomes alvinegros na caminhada do bicampeonato mundial brasileiro estavam em campo.
Contrastando com a demora anterior ao soar do apito inicial, o marcador foi inaugurado logo nos segundos iniciais da partida, graças a Amarildo. Na sequência, aos 38 minutos da primeira etapa, o Possesso marcou o seu segundo gol na noite, garantindo ao Botafogo maior vantagem para o intervalo.
Reiniciado o jogo, o que se viu foi um cenário ainda melhor para os mandantes após a lesão de Kim. Como o regulamento da competição permitia apenas uma substituição, que deveria acontecer antes do segundo tempo, o técnico Pedro Figueiró não teve alternativa senão recuar Gilberto para a região central, deslocando o lesionado defensor para a linha de ataque. Não bastasse a qualidade técnica do adversário, agora o Clube do Povo precisaria passar por cima de adversidades oriundas do seu próprio elenco para reverter o cenário negativo que se apresentava. Nem o mais otimista colorado poderia imaginar, porém, o tamanho da reação que estava por vir. Aos 30 minutos do segundo tempo, Alfeu descontou para o Inter. Seis minutos depois, Sapiranga, o Diabo Loiro, empatou. Antes do último apito, Garrincha ainda marcou para os cariocas, mas teve seu tento corretamente anulado pelo árbitro Ricardo Alberto Silva. Terminado o jogo, o Clube do Povo pôde se dar por satisfeito com o resultado, que garantia a decisão da vaga para a semana seguinte, em Porto Alegre. Os jornais gaúchos trataram a atuação colorada como uma das maiores da história do futebol riograndense, destacando a estupenda garra dos atletas.

Sapiranga, o ‘Diabo Loiro’, foi ídolo da torcida colorada em uma época de vacas magras.
Diante da limitada capacidade do já veterano Estádio dos Eucaliptos, mais uma vez o Olímpico foi escolhido como sede para a partida de volta. No dia 27 de novembro, véspera do jogo, a imprensa de Porto Alegre anunciava a recordista quarta-feira que estava por chegar. Toda expectativa foi confirmada na noite do confronto, quando mais de 30 mil pessoas estabeleceram novos recordes de público e renda para a capital gaúcha.
De fato, aquele se tratava de um duelo marcado por números. Enquanto o Botafogo anunciava que, em caso de vitória, pagaria a cada um de seus atletas ‘bicho’ de 100 mil cruzeiros, o Inter prometia 40 mil por jogador, até então o maior valor já visto no estado. Não bastaria, no entanto, ser superior ao adversário na busca pela classificação. A equipe vencedora precisaria também passar por cima das elevadas temperaturas que, apesar do horário tardio da partida - os times entraram em campo depois das 21h - não baixaram da casa dos 30º.
Dentro de campo, a exemplo do que ocorrera no Maracanã, o que se viu foi uma partida intensa desde o primeiro instante, disputada em nível inclusive superior àquele visto no primeiro confronto, uma vez que o clima seco, sem chuvas, garantiu que o gramado estivesse nas melhores condições possíveis. O roteiro, diga-se, também foi bastante parecido ao da semana anterior, talvez por conta das quase idênticas escalações. Enquanto o Inter foi a campo com os mesmos jogadores que haviam iniciado o jogo no Rio, o Botafogo promoveu uma única alteração, com a entrada de Jadir no lugar de Zé Maria.
Aos 37 minutos de jogo, Quarentinha, completando cruzamento de Garrincha, abriu o placar para os cariocas. Cinco minutos depois, Mané cobrou escanteio que Ezequiel afastou mal, na direção de Gainete, que não conseguiu defender. Novamente, o Botafogo descia para os vestiários com o 2 a 0 no placar. Cabia ao Inter contrariar o clichê, mostrando que um raio pode cair duas vezes no mesmo lugar, assim evitando uma eliminação que parecia encaminhada.

Iniciada a segunda etapa, no lugar de um raio, quem decidiu roubar a cena foi Osvaldinho. Conduzindo o Clube do Povo ao ataque, o craque vermelho deu início ao duelo mais interessante da noite, contra o goleiro Manga. Neste confronto particular, o arqueiro chegou a defender pênalti cobrado pelo ídolo do Inter, aos 25 minutos. No mesmo lance, entretanto, o rebote voltou para os pés do meio-campista colorado, que finalmente conseguiu descontar.
Conforme a partida se encaminhava para os seus minutos derradeiros, o Clube do Povo abandonou qualquer organização tática, passando a buscar o gol salvador na base da vontade e imposição. Desta forma, chegou ao empate aos 40 minutos da segunda etapa, após finalização de Bedeuzinho, que contou com desvio em Alfeu para confundir Manga, e morrer no fundo das redes do futuro ídolo colorado. Neste instante, o Olímpico explodiu, em festa que se estendeu para para além do apito final, quando uma multidão invadiu o campo. Com o novo 2 a 2, a decisão do finalista ficou para um terceiro confronto, a ser realizado dentro de dois dias, novamente no Olímpico.

Osvaldinho, craque colorado, viveu noite especial, em que conseguiu ofuscar até Garrincha.

O terceiro e último duelo entre os campeões carioca e gaúcho teve final lamentado pela torcida colorada. Contando com grande atuação da dupla Quarentinha e Garrincha, e, principalmente, magistral exibição de Manga, o Botafogo bateu o Inter por 2 a 0. O Clube do Povo deixou o campo aplaudido, em reconhecimento a todo o esforço e brio apresentados pelos atletas ao longo das três partidas e, principalmente, da competição. Para o classificado Botafogo, a vitória também serviu para garantir vaga na Libertadores do próximo ano, uma vez que o adversário na final da Taça, o Santos, já estava garantido no certame continental como atual campeão da América.

Goleiro Manga que em 1962 jogava pelo Botafogo
O primeiro confronto da decisão, disputado no Pacaembu e vencido pelo Santos pelo placar de 4 a 3, entrou para a história como uma das maiores partidas de futebol no Século XX. No jogo de volta, mais de 100 mil pessoas assistiram ao triunfo carioca, pelo placar de 3 a 1. A melhor de três foi encerrada no Rio de Janeiro. Desta vez, vitória santista, 5 a 0.
Era então consagrado o pódio da Taça de 1962: em primeiro lugar, o Santos, de Pelé. Em segundo, o Botafogo, de Garrincha. Na sequencia, em terceiro, o Inter, do povo. Povo este que, é bem verdade, na ocasião não conseguiu conquistar o Brasil, mas que cada vez mais fincava sua bandeira além do Mampituba. Em 1967, por exemplo, graças ao faro artilheiro de Lambari, viria a primeira vitória gaúcha em terras paulistas, e o vice-campeonato nacional, feito repetido em 1968.
Assim, se não foram repletos de grandes conquistas como os seus predecessores, os anos 60 plantaram na Maior e Melhor Torcida do Rio Grande a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, o Brasil seria vermelho. Antes disso, contudo, foi necessário construir um Gigante com as próprias mãos, partindo das águas um rio. No momento em que ele se levantou, majestoso, o povo pôde se dedicar aos acabamentos que restavam. Foi então que, primeiro com uma, depois duas, e finalmente três mãos de tinta rubra; decorou, na década de 70, o país inteiro ao seu gosto.

Fontes:
Matéria de Pedro Pacheco, originalmente publicada em https://legado.internacional.com.br/home#relembre-a-campanha-colorada-em-seu-primeiro-torneio-nacional-a-taca-brasil-de-1962

Acervo /Arquivo Histórico SCI/Biblioteca Zeferino Brazil/Sport Club Internacional
Revista do Globo -ed 25/05/1935
Blog1909 em Cores
https://www.cbf.com.br/futebol-brasileiro/noticias/index/garrincha-o-genio-das-pernas-tortas-foi-o-dono-do-mundo-em-1962







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